Cartas ao JG - Não era apenas um lençol. (Autor Ricardo de Faria Barros, pai do João Gabriel)


Sabe filho, dias atrás eu senti tua maozinha me cobrindo com um lençol, durante a noite.
Eu tinha vindo para cama mais cedo, e tu ficou vendo uma novela infantil, com Dona Celina.
Estávamos de férias, em João Pessoa, e dividíamos uma cama de casal, num dos quartos de um apartamento que aluguei.
A sensação era tão boa, de ver teu jeito em me cobrir, certificando-se que nada ficara de fora, que eu queria acordar e te abraçar, agradecido pelo gesto, mas não podia invadir aquele teu momento de carinho para com teu pai.
Foi um dos meus melhores sonos daquelas férias.
No outro dia, antes de irmos para a praia, vi que tuas unhas estavam grandes, e pela primeira vez as cortei - tarefa que antes era essencialmente de tua mãe.
Confesso-lhe que fiquei um tanto desajeitado, e com medo de te ferir, pois sou esquerdo.
Tesouras e abridores de latas não combinam conosco.
Mas, entre tentativas e aperreios, creio que consegui apará-las.
E tu sorria, vendo minha agonia.
Teu gesto de cuidado, na noite anterior, precisaria ser retribuído. Era o que eu fazia.

Aliás, acordei cantando e assobiando, como faz quem acorda após uma noite em que recebeu doses de amor gratuito.

Como o amor nos transforma!

E, se houvesse um aparelho de medir amor, um dos itens aferidos por ele seria, sem dúvida alguma, a intensidade das práticas de cuidado para com essa pessoa amada.  Como tu fez com teu pai, ao me cobrir durante a noite. protegendo-me daquele ar-condicionado muito doido.

Filho, não negue dar amor a quem habita teu meio.Seja serviço, seja doação. Mesmo que todos estejam embrutecidos, e alguns envaidecidos de tanto culto a eles mesmos, nos meios em que viverá, não negue o amor que tem para os outros. Nem por não receber em igual dose do que se dá.

O amor é um mistério paradoxal, pois só se acumula, só se renova, ao ser doado.
Quem guarda amor, diminui o amor em si mesmo.
Amor é algo que precisa de um tu, de um eles, de até um nós, para poder vingar num eu.
O amor é como uma musculatura que precisa de exercícios para manter seu vigor.

E, têm dois exercícios muito bacanas que abastecem o amor em nós mesmos. Ambos, não acontecem conosco. Sempre com o outro, por isso são mistério e paradoxo, como falei acima.

O primeiro foi o que tu fez comigo É o cuidar do outro. O cuidar não precisa ser oneroso, ou complicado. Aliás, creio que os melhores cuidados são os mais simples, como o que tu fez comigo.
Ou por exemplo, avisar que hoje é o último dia da Nota Legal, que o seguro DPVAT não vem mais no IPVA, ou fazer um cafezinho para ela (e), ou saber como foi o dia dele(a), interessar-se sobre a saúde dela (e).

Grave bem este verbo: Interessar.

Só cuida quem se interessa. Se tu não tem interesse pelo outro, como perceber as necessidades e expectativas dele, para tentar responder a elas, e até atender - no que puder, antes mesmo que ele lhe peça?

Quem se interessa pelo outro cria pontes, cria vínculos, cria sentido de coletividade.

O outro exercício da renovação do amor é da admiração do mundo do outro.

Exercitei isso muitas vezes contigo. Ao admirar tuas histórias e personagens infantis. Fiquei até craque sobre o Naruto e um certo tipo de game que jogamos no Shopis, várias vezes.  Já sabia até os macetes, que tu me passou. "Atira no cristal verde, pai! Ganha uma vida".

E tu me admirava contando histórias. E, quando boto pra falar...
Teve uma hora que te ensinei sobre a arte de fotografar, dizendo pra ti: "olha ali que belo, olhe aquela flor, olha aquela falésia, olhe aquele pássaro...'"
E tu prestava atenção como um hominho, até passando a me mostrar também os teus olhares sobre as coisas belas que via: "olha aquela nuvem em forma de cachorro".

Mas, filho meu, andamos pobres nessa competência de se interessar pelo o outro. Muita coisa nessa sociedade competitiva e consumista, ensina a fazer o mundo girar em torno de nós mesmos.

E só vamos desenvolver esta competência, fundamental à fonte do amor em nós, estando disponível e 100% presente ao outro, esforçando-nos para apreciar o mundo de valores dele, é que em nós o amor crescerá. Admirar  o outro é uma forma de participar de sua história, cultura e dele mesmo.

Portanto filho meu, quando estiver lendo esta carta, continue estando atento a quem está passando frio perto de ti. Pegue um lençol e altere o destino destas pessoas, o que em muitos casos não exigirá muita coisa de ti, apenas que preste atenção a elas, e tome a iniciativa de servi-las, ao se doar.


Obs: Quando da publicação deste texto, o JG estava com 8 anos.


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