Da arte de acolher o mal (Autor Ricardo de Faria Barros)

Era uma manhã de domingo, daquelas que o sol amanhece bonito, denunciando seu encantamento com a manhã.
Preparei-me para feirar, quando a campainha toca, e era o Adalfran, meu amigo e porteiro do prédio.
Ele queria saber se eu podia dar uma carona para ele, até um ponto de ônibus mais movimentado, pois estava “pegar” uma moto usada que comprara de um amigo.
Oxente, mais é claro, falei.
No trajeto, ele contou que entrou num bolão de dinheiro, junto a outras quatorze pessoas. E que o mês que ele pegaria a grana seria em março de 2018.
Com os R$ 5.000,00 ia procurar uma moto usada, útil para facilitar seus deslocamentos.
Ele estava radiante. Um amigo próximo, ao se acidentar pela segunda vez andando de moto, resolveu passa-la para frente, e aceitou receber os R$ 5.000,00 em março.
Ele me dizia que ela estava usada, mas ainda novinha, pois é de 2008, e está com a “documentação em ordem”.
Fiquei alegre por osmose. E é bíblico, “alegrai-vos com quem se alegra”. No caminho fui fazendo-lhe recomendações, pois já sofri um grave acidente de moto, que queimou uma de minhas sete vidas.
À tardinha ele tocou a cigarra querendo que eu fosse vê-la. E era uma belezura mesmo. Toda estilosa, uma 250 cc.

Na quarta feira seguinte, eu chegava de Brasília, tinha acabado de deixar o JG em casa, e o avistei junto à moto, preparando-se para sair nela. De longe, ele acenou para mim, e segui em sua direção.
Ele nem me deixou dar boa tarde, e foi logo dizendo: “Paraíba, olhe que fizeram nela!”
E, desolado, passou a me mostrar uns arranhões perto do tanque, e outros no assento.
Fiquei triste por osmose. E é bíblico, “entristecei com quem que entristece”.
Ele continua, e me diz, babando de raiva, que só pode ter sido coisa de um desafeto dele, que mora no nosso prédio, e que o passado o condena. Por atitudes semelhantes, de quando ele comprou um carrinho, tempos atrás, e amanheceu com um líquido corrosivo sobre a pintura, que a estragou, tendo sido esse “Sem Noção” o principal suspeito, àquela época. Ele já denunciou o desafeto por preconceito racial, fruto de uma humilhações que passou com ele, mas ficou nisso mesmo.

Pedi que ele se acalmasse, pois além de não ter provas, ele era a parte frágil dessa relação, e que subisse no meu apartamento para conversarmos.

À noitinha ele apareceu. Estava transfigurado e com um desgosto tremendo, por terem danificado a pintura de sua moto. Na perspectiva da base da pirâmide social, tudo é tão difícil de se conseguir, que compreendi perfeitamente a desolação dele. Aquilo não era apenas uma moto, era mais um pequeno degrau que subia na vida. Portanto, era a materialização de seu sonho.

Em certo momento, ele ao me escutar, disse que ia deixar para lá aquela raiva que estava sentindo, que ia relevar.
Disse-lhe que acolher a raiva é melhor. Ele me perguntou a diferença. Ao se “deixar pra lá” algo, ele teima em crescer.
Mas, ao assumirmos nossa dor, nossas emoções, e as reconhecermos, elas podem ser efetivamente melhor canalizadas.

Acolher a dor não significa concordar com o que houve. Não significa criar um mundo cor de rosa para nele habitar, alienando-se.

Significa compreender que nem tudo sai do jeito que esperamos, do jeito que queremos, ou planejamos.
Em alguma esquina da vida, alguém vai nos arranhar. Vai nos machucar.
Vai estragar parte da lataria de nosso viver.

Acolher o mal, significa deixar que ele em nós opere. Significa usar a força negativa dele, contra ele mesmo. Como nas artes maciais.

Significa entender que não temos controle sobre o outro, e que nem sempre ele compartilha de nossos valores e visão de mundo.

Quando acolhemos o mal, entendemos que ele nasce junto com o trigo, como o joio, mas que o trigo ao crescer, 100% mais alto que ele, dará frutos e sombreará o joio, eliminando sua força invasora.

Dará trigo para alimentar multidões.
Assim é com a luz da bondade e amor. Irradia, transforma, cura, renova, fortalece e anima a caminhada.
O mal não consegue fazer isso. Ele se acaba em si mesmo. Quando focamos no arranhão que em nós fizeram, deixamos de perceber o que não está arranhado e que é bênção.

Focamos na maldição e no desgosto. E esquecemos a bênção e o gosto de viver.

Era o que ocorria com ele. De tão decepcionado com a atitude que alguém fez para com ele, ele deixou de apreciar o que conquistou. A motinha bonita, mesmo arranhada, com motor bom, com documentos em ordem, e sendo sua, três meses antes do previsto. E de muita procedência, item importantíssimo para quem compra coisa usada.

Na alma arranhada dele, escorria todo o prazer da recente conquista, transformando tudo em trevas, pela força do ódio que lhe consumia.

E, se ele não intervisse naquele arranhão, agora no seu tecido emocional, aquilo lá poderia ter infecionado e virado uma gangrena. Destruindo-lhe por inteiro, como uma grave ferida emocional.

Acolher o ruim significa que na vida nem sempre as coisas sairão 100% como queremos. Mas, muitas das vezes, os 50% já dão jogo, já estaremos no lucro.

Quem garante que o tempo em que ele me relatava do arranhão, ainda de capacete e jaqueta, pois que ia sair naquele final de tarde, não foi suficiente para livrá-lo de um acidente, comuns nestes dias chuvosos por aqui?

Nossa vida é uma colcha de retalhos. Alguns deles não vemos sentido em sua forma, cor e textura. Mas, quando se juntam aos outros, tudo fica uma belezura só.
Têm coisas pelas quais passamos que são como esse tecido sem nexo, que se cola em nosso pano existencial. Depois, só muito depois, perceberemos que ele foi um marco importante em nossos viver.
Até para apreciarmos melhor, os tantos outros tecidos: de boa forma, textura e cores que em nós se afixaram, e que passaram a ser despercebidos, como se sempre estivessem ali.
Quem sobrevive aos revezes da vida, e saí deles sem aderir ao mal, torna-se melhor como pessoa.

Aprende a valorizar os 90% da área do tanque de gasolina que está com a pintura em perfeito estado, no lugar de ficar implicando com os 10% que sofreram o golpe do mal.
Aprende a focar no que lhe causa satisfação, alegria e paz na vida. E não no que nela acontece que lhe tira do sério, causando-lhe tristeza. A isso se chama acolher, deixar partir, deixar levar e desapegar de tudo que lhe faz ou lhe torna infeliz. Entendendo que no pacote da vida e do viver, alguns arranhões vão nos tornar mais fortes, caso não virem uma ferida fétida. E, se pararmos de valorizá-los eles perderão a intensidade infeciosa.

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