O show não pode parar (Por Ricardo de Faria Barros)

Era manhã de sexta e fazia frio. No horizonte, a neblina da manhã chuvosa teimava em desafiar o sol que sobre ela se deitava. Olhei-me no espelho e os cabelos espevitados, de uma pré-careca ao centro, pediam para serem aparados. Lembrei-me que era dia da Feira da Lua, e que precisava comprar pimenta de cheiro, para uma moqueca domingueira. Embora se chame de Feira da Lua, ela abre pelas 6hrs da manhã, da sexta, e só fecha na madrugada do sábado.

Na noite da sexta, o espaço é disputado por muitas barracas de comilança e shows. Durante o dia, é um sortimento só, daqueles de encher os olhos. É peixe fresco, pescado na hora, dentro de enormes caixas de água, é honesta linguiça de porco defumada, e é todo tipo de hortifrutigranjeiro. A feira funciona ao lado do Estádio de Sobradinho-DF.
Parei no estacionamento dela, olhei-me no espelho e estava estragado, com os cabelos centrais bem rebeldes. Então, perguntei a um guardador de carro se tinha barbeiro próximo. Ele apontou para um, por trás da rodoviária, e segui para lá, "de pés" mesmo.

Cortei o pelo e voltei à caça da tal pimenta de cheiro. E eis que me deparo com uma cena de tirar o fôlego, daquelas que ao vermos não conseguimos mais fazer nada de nada, para o tempo!
Perfilados estavam uns 20 velhinhos, embaixo de um toldo, cada um deles com um instrumento musical de percussão na mão.
Pensei, vai ter show!
E teve, e daqueles de ganhar um óscar.
Eles são asilados do Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes, aqui de Sobradinho-DF, e era o dia da apresentação do seu grupo musical.
No meio deles circulavam voluntários, que não deixavam a música sair do ritmo, e estimulavam o mais sem jeito tocador a fazer seu próprio som, sem se preocupar se estava correto.
O importante era participar da atividade.
E que atividade!
Tirar aquelas senhorinhas e senhorinhos do asilo em que vivem, num dia tão frio, mas proporcionar-lhes aqueles momentos de tanto calor, pela inclusão cidadã e vacina contra a morte social, era algo de emocionar a mais pedra dos corações.

Pena que os clientes da feira livre estavam ocupados demais, para pararem um pouco ali e prestigiarem o espetáculo.

Cada um deles, à sua maneira, estava desafiando o destino das coisas, ao tocar seu instrumento e continuar sentindo-se ativo.

Cada um deles estava criando algo para além de suas vidas esquecidas, num canto qualquer. Agora eram artistas de rua, disputando a atenção dos clientes, com o melhor que eles tinham, a força da sua idade que desafia a vontade de parar.

Tinha o que batia o bombo, que ralhou com o monitor-voluntário: "Deixe eu fazer do meu jeito, não reclame comigo". Que lindo.
Tinha a vovozinha do pandeiro, que não parava nunca de agitá-lo, era a mais animada do grupo.
Tinha o vovozinho que precisou de uma ajuda com seu instrumento de percussão, ao que uma jovem voluntária pegou em sua mão e deu a ela a maestria de um músico profissional.
E ele agradeceu com um sorriso escancarado. Como quem dizia: "nossa, era só fazer assim!"

Acho que uma boa ideia era botar cadeiras e improvisar um tipo de palco. E trazer um monte de gente, inclusive eu, para sentir tanta vida saindo de pessoas que foram deixadas para trás naquele asilo, e que mesmo assim, nãos e deixaram ficar para trás.

Escrevo emocionado imaginando o que deve estarem comentando nessa noite, após o jantar, sobre o show que deram.
Alguns deles devem estar ensaiando para a próxima sexta. Será que tem toda sexta?
Outros, devem estar perguntando como faz para aprender determinado instrumento, como o pandeiro da vovozinha, que só ela usava.
O monitor-voluntário, o cantor e tocador de violão, deve estar com eles, comemorando o feito. E ouvindo de alguns que estava muito frio, mas que conseguiram. De fato.
Aquele grupo, de octogenários para cima, teria mil razões para não fazer o show nessa manhã. Mas, ele não se deixou abater pelo desânimo, até pela falta de quem lhes aplaudissem.
Eles estavam juntos se divertindo, e não deixando que o fantástico show da vida parasse de acontecer nas suas jornadas peregrinas.

Bem cedo, eles tomaram uma decisão, não ficariam em seus quartos esperando o dia de amanhã raiar. Eles raiariam o dia de hoje, com sua presença no mundo, levando música a um lugar que se eles ali não estivessem, ela não teria acontecido.

Após umas quatro músicas, dei pequena gratificação muito menor do que a que deles recebi, e parti em busca da pimenta dedo de moça.

Não achei, mas eu ia reclamar de que mesmo?

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