Da arte de pedalar sem uma das pernas. (Por Ricardo de Faria Barros)

Naquela quinta, 10/08/2017, tudo falava saudades. Era o dia de deixar meus pais no aeroporto, após um mês que passara em meu lar.
À medida em que envelhecemos vamos dando mais valor a ser amados por nossos pais.
Aliás, acho até mesmo que vamos nos permitindo às suas formas de expressar o amor, sejam quais forem, saciando-nos plenamente com elas.
Meu pai expressa amor arrumando minha caixa de ferramentas.
Mamãe, perguntando se fui à missa.
No trajeto ao aeroporto, uma dupla de ciclistas pedala em alta velocidade, na ciclovia ao nosso lado, ora passando por nós, ora nós passando por eles, dado o lento trânsito naquele horário da manhã.
De tanto olhar para eles, e só assim, noto que um deles não tem a perna esquerda. Que sua roupa de ciclista está vazia, na coxa e perna que deveriam ali estar. Ele pedala com uma perna apenas, e não perde em nada em velocidade e equilíbrio para seu colega que ao seu lado segue.
Fiquei estupefato com tamanha destreza, mas o trânsito não recomendava foto de celular, e perdi a belezura daquela cena de sobrevivência.
À tarde, ainda com sintomas de saudades, tenho súbita vontade de entrar na Igreja da Esperança, no caminho para buscar JG.
E ali, aos pés da Santinha, eu rezo meu terço. Coisa que não fazia há uns 35 anos.
Sigo para a Ânimo, é que tenho atendimento na boca da noite, uma sessão de coaching, na qual posso influenciar no carrossel do destino de pessoas e de mim mesmo.
Ele chega ansioso, pede que não façamos a avaliação a semana anterior, dos avanços do que nela ela tinha se proposto.
Ele me diz que vive uma semana difícil, após uma separação de mais de dez anos ao lado dela.
E que coisas banais chegam ao seu coração e mente, atormentando seu espírito. Como por exemplo ter ouvido na manhã de hoje saltos altos batendo no chão.
Ele acordou com a súbita presença de ser ela quem entrava no quarto, após se arrumar no WC para ir trabalhar. E não era. Ele estava num flat, para onde foram morar. O som vinha do quarto ao lado, que pelo silêncio reinante no local, ecoou na sua vida.
Ele me conta que já não a amava, mas que essas lembranças são de um cotidiano que embora não houvesse amor, também não era entre tapas e beijos, não havia animosidade entre eles. Só amizade, fruto ácido de amores que se vão.
Bem emocionado ele me diz que saiu com os amigos, na noite de sábado, dois dias após receber o cartão vermelho dela, e que no barzinho tocava samba.
Então, ele pegou seu copo para fazer costumeira percussão, batendo a aliança contra sua borda, e não saiu som. Aí ele percebeu que estava sem.
Ele sofria, reconheço, e contei-lhe do ciclista.
Se eu tivesse presenciado o acidente ou doença que decepou a perna dele, à época, e sua luta pela reabilitação motora, agora só com uma das pernas, eu poderia dizer que o que vi hoje era um sonho, uma ilusão, uma fantasia.
Desde seu acidente era impossível prever que ele conseguiria dar uma resposta à vida, e de forma tão satisfatória.
Durante a reabilitação aquele ciclista deve ter passado por maus momentos, por uma angústia profunda, por raiva, frustração, e deve ter acordado muitas vezes sentindo ainda sua perna, que mesmo arrancada, ainda enviava sinais para o cérebro, em hábitos neles moldados.
Eu imagino que se alguém dissesse àquele jovem, dias após ter sido amputado, que no futuro ele pedalaria pelo Lago Sul, com uma das pernas, e na mesma velocidade de outro sem pernas algum, ele olharia incrédulo para a pessoa, ou até com raiva, de desqualificar o sofrimento dele, naquela hora.
Só haveria um jeito de mostrar-lhe que sua vida se reinventaria, lá nas esquinas do futuro, e ele acreditar: mostrando-lhe uma bola de cristal.
De resto, qualquer “conselho” desse tipo seria percebido como uma vã ilusão, como uma forçada de barra, para que ele se sentisse melhor.
Não sabemos o que a vida nos oferecerá, após grandes choques pelos quais passamos.
Só sei que se continuarmos dando o nosso melhor, sobrevivendo um dia de cada vez, nos esforçando, buscando nossas verdades, não ficando na posição de vítima, culpa, ou naquela de quem desiste de lutar, ficando sentado à beira do caminho, ela, a vida, vai se restaurando novamente, em outros tons e formas.
Mas, tem que ter paciência com o luto e seus processos profundamente asfixiantes e agoniados, em todos eles, o sofrer, culpa e desorganização emocional, podem se fazer presente, como nos abaixo, por exemplo:
Luto de pais que perderam seu bebê, ainda na barriga da mãe.
Luto pelo enfrentamento de uma doença, ou trauma incapacitante.
Luto por amor não correspondido.
Luto por um filho desaparecido, ou morte de ente querido.
Luto da separação de amantes.
Luto pelo desemprego, ou aposentadoria.
Luto pela migração geográfica, por fatores não desejados.
E por aí vai. Na escala de luto, não há luto menor ou maior, embora alguns estudiosos do tema adorem categorizá-los assim.
Eu creio que para quem está enlutado, como meu cliente, o dele será sempre o maior.
E, não há receitas fáceis. Não há autoajuda que dê conta.
Amigos ajudam, apoio psicológico também, chá de camomila, reza, malhar, viajar, meditar, etc.
Mas o luto é amigo do tempo.
Ele pede um tempo para se recolher em si mesmo. Ele pede uma profunda pausa, quase que colocando a pessoa em “Standy By” .
Afinal, que passou por um desse processo de luto sabe que é como uma quase-morte, ainda vivo.
Mas, o tempo opera milagres. Assim como a fé e amigos, o tempo atua nas profundezas do luto, diminuindo sua intensidade mórbida.
Ele, o Senhor do Tempo, vai remodelando o luto,
transformando-o em algo pelo menos aceitável, mesmo que dolorido.
Em algo que não sequestrará toda a vida do enlutado, tirando-lhe energias para tocar novos ou velhos projetos, e até a rotina do dia a dia.
Com compaixão, falei ao amigo que ele precisa deixar o rio correr sozinho, não o apressar.
Precisa entender que muitas rotinas e hábitos ficaram impregnadas até o talo em seu corpo, e que doentio seria se ele não estivesse sentindo nada.
Ele olha para mim com olhos suplicantes, e pergunta quando ficará bom, qual dia, mês e ano?
Digo-lhe, que não sei, mas que se ele fizer como aquele ciclista, no futuro estarei cruzando por ele, que mesmo ainda decepado, sem um membro que o luto levou, já consegue ânimo para pedalar, numa quinta qualquer, sem dever nada aos menos amputados que ao lado dele caminham. Aliás, creio que ele está pedalando com um sorriso enorme no rosto, o sorriso que só sabe do que falo quem já passou por um perrengue na vida e tempos depois conseguiu se recuperar, retomando o curso e fluxo da vida.
Sem se cobrar ser forte, mais do que o necessário, sem ter vergonha de chorar, pedir ajuda, desabafar por mil vezes, sobre o mesmo tema. Não adianta apressar o tempo, e cada um tem o seu próprio relógio interior do tempo que para ele será necessário. Não há comparações em tempos de luto.
Mas, há de se evitar ficar criando o luto numa gaiola, dando-lhe comida, remédios e proteção, como a um animal de estimação, correndo o risco de ir habitar nessa mesma gaiola, e dela será bem mais difícil de sair.
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Obs: Na foto Um atleta famoso que sempre pedala forte em todas as trilhas e competições, mesmo com uma perna só, é Alarico Moura, o Alá. Depois de ter uma das pernas amputada há 30 anos é ele foi conhecer o prazer de pedalar e o próprio potencial. Descobriu também que ele poderia ser (e, de fato, é) um grande artista plástico. Veja em:

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