Há de se fazer jardins! (Autor Ricardo de Faria Barros)

Numa mesma cobertura: dois apartamentos.
Num deles, a assepsia reina. Tudo limpinho, sem qualquer presença que denuncie o humano. O morador eventualmente vai na cobertura, já o flagrei contemplando o horizonte.
No outro, um diferente morador fez dele um jardim, com suas inevitáveis folhas secas, seu pó de terra avoante, e alguns cocôs de pássaros que dele vem se alimentar, ou simplesmente namorarem com suas passarinhas.
De um lado, a vida asséptica, toda controlada, limpinha e tão organizada como bancada de programa gastronômico.
Lembram?
Aquelas em que os mestres-cucas usam utensílios cirurgicamente dispostos, com seus produtos previamente preparados, esperando a hora de serem postos na receitas, esperando em potinhos angelicais.
Tudo tão organizado que perde a dimensão do improviso, da arte. E, convenhamos, viver não tem nada de ser algo preciso. Nem no amor, nem no trabalho, nem na vida social. Viver é preciso. Não se coloca a vida numa planilha de excel.
Ou você acha que amará alguém, no sentido carnal do termo, por apenas querer amar?
Não se ama por querer amar alguém. Aliás, você sabe por que ama alguém, de um tantão, e um outro alguém não tanto assim? O amor é mistério, e mistérios são como o jardim da foto.
Garante-se a semente, não se garante o vingar. Não se pode precisar seu desenvolvimento, não há precisão, ou garantia matemática, dos resultados de um jardinar: em pessoas ou na natureza das coisas.
Então, caros amigos e amigas, a vida não tem nada de precisa.
A vida pede jardins, mesmo com seus ônus. Prefiro morar mil vezes no apartamento do jardim, do que no outro, limpinho e sem tralhas. Não temo as folhas secas, pois a vida pede um certo desarrumar-se.
Os lares também. Um lar, verdadeiramente falando, têm aromas, têm respingos, têm coisas largadas, aqui e acolá, têm sons, tem vida. Um lar pede um certo caos, mesmo que organizado.
A vida pede sujar os pés no chão, pede boca melada de fruta comida com as próprias mãos, pede experiências significativas, que só as terá, quem se permitir sair dos programas tradicionais, impressos em belos folderes, fazendo seus próprios roteiros e destinos.
A vida pede que subamos pelo elevador, carregando sacos de terra adubada, vasos de mil formatos, plantas de todos os tipos, e que com elas façamos nosso jardim interior.
Quem fica sempre na asséptica rotina dos dias.
Ou na cuidadosa segurança da rotina, nunca saberá de fato o que é viver.
Passará pela vida e não terá vivido. Não alterará o ambiente em que habita, como esse morador ajardinado o fez.
Atraindo borboletas, beija-flores, bem-te-vis e abelhas para nele polinizar a vida, e dizer, em cada flor que se abre, que viver, amar, valeu!
Portanto, tratemos de criar jardins e pomares em nossas coberturas existenciais. Outros, e a nós mesmos, dela se alimentarão.
Deixo-vos com o poetinha maior, Vinicius de Morais, que tão bem falou sobre esse se doar, se ariscar e se dar à beleza de viver:
"Quem já passou
Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu, ai
Quem nunca curtiu uma paixão
Nunca vai ter nada, não
Não há mal pior
Do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir?
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração
Esse não vai ter perdão..."

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