Cartas ao JG - Transições Necessárias (Autor Ricardo de Faria Barros)


Querido JG, era um domingo pela manhã, dia do aniversário de teu irmão mais velho, o Tiago, que fazia 32 anos.
No dia anterior, comemoramos o teu aniversário dos oito anos.
Comemoramos no dia 8, já que o dia 6/7/2017 caiu numa quinta.
Gosto muito do dia seguinte ao teu aniversário.
Embora eu tenha uma trabalheira danada para por a casa em ordem.
No dia seguinte, é quando autorizamos que você abra os presentes.
E é como se a festa continuasse.
Ver sua carinha de expectativa, sua vibração e felicidade, a cada pacote que abre, é um pedacinho de céu.
Da posição em que eu estava, eu tinha uma vista privilegiada de você abrindo os embrulhos.
E, fui notando que passou a balançar as caixas e sacolas.
Algumas deixava de lado para abri-las depois.
Dizia: "é roupa".
E, à medida em que avançava na operação mais caixinhas eram deixadas de lado, e tua expressão foi mudando.
Não é que ficou triste.
Só mudou a expressão.
Sabe aquelas boas atrizes que conseguem alternar na face a expressão de desejo para de frustração?
Assim acompanhei teu rostinho.
No final, recolheu os poucos brinquedos, como tesouros.
Olhou para os "embrulhos sem sons" e começou a abri-los, um a um.
Nós percebemos e passamos a fazer festa, com cada camisa, boné e calça que abria.
Até pedimos que você fizesse pequenos desfiles.
Quando abriu a camisa do Barcelona ficou muito feliz, tu gostava muito de futebol.
Ainda vou te dar uma do Fluminense.
Passado um certo tempo, tu recolheu os presentes que fazem barulho, teus brinquedos, e um a um subiu com eles para o quarto.
Deixou, no canto do sofá, as roupas.
Vendo-lhe subindo as escadas com teus brinquedos, segurando-os como tesouros, senti uma perto no coração.
Acabei de presenciar a primeira transição que a vida faz contigo.
Ano a ano, os presentes que chocalham vão sendo em menor número.
Você está virando um rapazinho, e os brinquedos vão começar a rarear.
Logo mais serão roupas, discos de música, livros, perfumes, cintos e gravatas.
E, quando chegar nas gravatas, a infância será apenas uma doce lembrança.
Filho, passou rápido não foi?
A vida passa muito rápido. Então, aprenda a degustá-la no momento, prestando bem atenção a tudo que lhe acontece.
Esteja presente!
Não se ligue no piloto automático.

Um dia desses você brincava com seu "amiguinho de pano", e alegrava-se com carrinhos que ganhava.

Durante a vida você ainda passará por muitas transições.

Aliás, creio que elas nunca findarão.

Até na idade adulta passamos por transições. Pelo ponto de mutação, no qual de um dia para a noite a roda gira, e assumimos outros papeis.

Apenas uma coisa te peço e recomendo.

Nunca deixe largado, num canto de seu coração, a alegria de viver de uma criança.

Não vire Homem sério e chato.

Daqueles cheios de razões, de verdades intocáveis, rabugentos, críticos e reclamões de tudo.
Deixe a criança em ti sobreviver, mesmo que em outras formas e situações.
Existem outras formas de brincar, na juventude e vida adulta, sem ser com brinquedos.
Você verá.
Quando você sair para dançar, será um prazer enorme, é um brincar.
Quando você viajar, será como brincar.
Quando você praticar algum esporte, participar de algum evento cultural, será como brincar.
Não se perca disso. Não vire Homem sério e ocupado, tão ocupado que perdeu a capacidade de poetizar a vida.
De ir num teatro, de participar de uma festa popular, de andar de pés descalços e de tomar mais sorvete do que sopa.
Não se perca da curiosidade da descoberta, aquela que faz com que aprendamos coisas novas, um valor muito presente na infância.
Não se perca da capacidade de refazer relações desgastadas, daquelas que ao brigar com os amiguinhos, 5 minutos depois já estão brincando juntos novamente, sem mágoas ou ressentimentos.
Não se perca da capacidade de se alegrar com o simples, como tantas vezes se alegrou ao subir em árvores.
Não se perca da criança que um dia habitou em você, será ela quem te dará forças para sair do lugar comum, o da estagnação, e ousar ser diferente.
Não tema passar por ridículo, se assim precisar, para defender os valores mais nobres da bondade, mansidão, doação e esperança.
Esteja sempre disposto a um recomeçar, a entrar no carro e partir para um lugar que nem sabe onde fica, apenas pelo prazer de passear com teu pai dirigindo.
E, nunca esqueça, no carro de tua vida quem dirige é o nosso Pai maior.
Portanto, não tema as transições!
Elas serão necessárias ao teu amadurecimento.
E,  por mais duras que sejam, sempre poderá guardar consigo e preservar, algo de bom da etapa anterior, como a felicidade de ser criança.
Nunca se perca dela! Mesmo que um dia tenha que passar pelo nó da gravata apertando, ainda assim, cultive um espírito livre e amoroso. Não tema passar recibo de "estranho", de bobo, de um cara que faz as coisas diferentes.
Seja normal, no que é preciso para sobreviver.
Quanto ao demais, seja você mesmo.
E, se ao passar por uma calçada, tiver uma fruta madura num pé de manga, e quiser tirá-la e chupar, ali mesmo, faça isso.
Não deixe envelhecer teus desejos, culpando alguém ou terceirizando os outros, pelo fato deles não terem virado realidade.
Em mutias ocasiões, será de você que a vida esperará mais respostas do que justificativas.
Coisas que as crianças são experts em fazer.
Sim, tua tia Marlene, irmã de mamãe, ligou perguntando o presente que quer. Ela vem no dia 16 te visitar, pois não pode vir no sábado.
Eu disse a ela: "Traga um brinquedo". rsrs
Tá me devendo esse!

Deixo-lhe com poesia.

Tempo de Travessia – Fernando Pessoa
“Há um tempo em que é preciso
abandonar as roupas usadas
Que já tem a forma do nosso corpo
E esquecer os nossos caminhos que
nos levam sempre aos mesmos lugares
É o tempo da travessia
E se não ousarmos fazê-la
Teremos ficado para sempre
À margem de nós mesmos”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores