Aí você acorda. (Autor Ricardo de Faria Barros)


E sente aquele frio imenso. A cama lhe atrai como um imã. Mas, você tem atendimento logo cedo, e pula dela apressado.
Entra no banheiro e tem dificuldade de urinar, não consegue ver onde se escondeu o bingolim, encolhido pelo frio que ficou.
Olha para o chuveiro e lembra-se que precisa encarar um banho. Até pensou em usar o velho truque do perfume, mas o corpo está muito estragado, e precisa de um banho para rejuvenescer.
Abre o chuveiro e percebe que o frio da madrugada fez com que o aquecedor solar não conseguisse aquecer a água das tubulações. Então lembra-se de dar dez pulos embaixo da água gélida, enquanto lava as partes pudicas e axilas, no 9 pulo molha rapidamente o cabelo, e já deu. Chega de banho.
E aí você sai do chuveiro, mas parecendo um palito de picolé, e se olha no espelho.
De seu nariz vê saindo aqueles pelos, comuns em machos que envelhecem, de qualquer espécie.
Lembra-se então que comprou, lá nos camelôs, um “pra que isso?” que se propõe a cortar os pelos do nariz.
Todo orgulhoso, da tecnologia disponível, liga o “pra que isso?” e ele não funciona. A pilha só tinha carga para a demonstração do vendedor.
Aí você olha para o bingolin desaparecido, olha para o chuveiro gelado, olha para os pelinhos que agora acenam para você, vitoriosos, e pensa consigo: “hoje era dia de ficar na cama!”
Bate o rosto com as palmas das mãos, e lembra-se que um bom café cura tudo.
Então, refeito das frustrações, mas ainda com frio na alma, e querendo jogar o aparelho ladeira abaixo, bota uma roupa quentinha, e lembra-se que é a hora do café na cozinha.
Pensa, com suas papilas gustativas, Cida já chegou, com certeza”
Então, sai do banheiro e cruza com a esposa, que carrega o pequeno insone para a escola.
Respira fundo, abre um sorrisão e profere para ela o seu melhor bom dia.
Ela olha para você, com cara de “Bom dia por que?”, e você desiste de dar-lhe um abraço, com medo dos espinhos. rsrs
Aí, numa fração de segundos, lembra-se que no dia anterior ela pediu-lhe ajuda para uma carona até a concessionária, e você falou que não podia ajuda-la, dado que seria na mesma hora de uma palestra no Sistel-DF.
Estava explicado o “Bom Dia, por que?”
Então, refeito do chuveiro frio, dos pelos no nariz, do abraço não dado, você dirige-se à cozinha, ávido por aquele café delicioso.
Na porta da cozinha, Cida lhe espera pelo lado de fora.
Você estranha o fato, abre a porta, e ela lhe diz que não fez café ainda, dado que sua mãe trancou a porta por dentro, com medo de ladrão. Ela não conseguiu acessar a cozinha.
Aí você se lembra que tomou banho frio, que o pelos do nariz ficaram tirando onda de sua cara, que não teve um bom dia sequer e agora nem café tem para afogar o frio na alma.
Cida lhe diz que em dez minutos o café estará servido, e “bem gostoso”.
Pensa em aproveitar o tempo de preparo do café, para atualizar as mensagens do celular. E percebe que a bateria arriou, pois não deixou carregando o celular.
Celular é um troço que sempre está sem bateria.
Procura o carregador, o único que dá na traseira do celular modernoso que comprou, e não acha onde a colocou.
Aí pensa, que dia!
O chuveiro gelado, o pelo no nariz, o bom dia sem o bom, o café atrasado, e o celular mortim...
Para matar o tempo, antes do café, já que num tem celular para distrair, lembra-se da obra de arte matinal que sempre faz.
Então, pega um bom livro de psicologia e dirige-se para o banheiro do escritório.
Senta-se qual rei e se dar o direito de um daqueles n. 2 memoráveis, com tempo para a leitura de duas páginas do livro.
Agora bem relaxado, você levanta-se, olha para sua obra de arte, e dá descarga.
Aí, percebe que o conserto que o bombeiro hidráulico fez, no dia anterior, na bacia sanitária, não funcionou.
A sua merda dá cambalhotas, rodopia, mas não desce tubo adentro.
E o vaso sanitário fica mais parecendo um aquário de merda, com peixinhos circulando nela livremente, desafiando o redemoinho de água.
E, aquela merda posso sentir, está quase alegre, sentindo-se tão vitoriosa quanto os pelos de meu nariz. Do banheiro ouve sua mãe dizendo-lhe que está fazendo as preces para “as almas dos vaqueiros” para achar o carregador do celular.
E pensa que está dando trabalho até às almas. Respira fundo, e por falar em nariz, sente o aroma do café entrando na vida, vindo da cozinha.
Refeito do desgosto de ver merda boiando, dirige-se à cozinha.
Chegando lá, vê que seus pais de 80 e 78 anos, que vieram de Campina Grande-PB lhe visitar, já estão sentados degustando o café.
Sua mãe pergunta-lhe se comprou o mamão dela.
Ai, você todo orgulhoso de ter se lembrando daquilo, no dia anterior, diz que comprou e pede à Cida que ara o mamão.
Cida abre o mamão e solta um: “Sr. Ricardo, o mamão só está maduro por fora, por dentro está verdinho, verdinho, não dá para comer”.
Aí, um turbilhão de pensamentos negativos assolam teu ser, como que descessem rio abaixo: lembra-se do frio do chuveiro, dos pelos de velho, do abraço sem receber, do café atrasado, do celular mortim, do carregador desaparecido, do conserto que não consertou, da merda saltitante e do mamão comprado errado.
Mas, você é um ninja emocional, e se recupera logo, sem deixar transparecer para sua mãe o seu estado de frustração.
Para disfarçar o vexame de ter comprado o mamão errado, levanta-se, abre a janela da cozinha e respira fundo.
Dali, contempla o horizonte e ver o sol nascendo, em mil tons de laranja à carmim.
E uma brisa Aracati entra pela janela e areja teu ser.
Você respira fundo, agradece a Deus pela manhã que nasce, e pelos seus pais que tomam café contigo.
Fecha a janela, para que a friagem não atinja seus pais, volta-se para eles que alegres comem do que tem à mesa, e não reclamam.
Sua mãe até diz que não queria mamãe mesmo.
Mães fazem isso, renunciam a elas mesmas para que os filhos sintam-se melhores.
Aí você quase não se lembra mais:
Do banho frio, dos pelos rebeldes, do bom dia sem dia, do atraso do café, do celular mortim, do carregador desaparecido, da merda peixinho, do mamão verde e decide olhar para o que sobra no dia, e não para o que ele esteve em falta para contigo.
Olha a sobra de ter uma casa, de ter pais, de ter uma Cida, de ter um café, de ter água, de ter uma janela para as montanhas, de conseguir fazer a digestão, de estar vivo, e escolhe racionalmente fechar as janelas das frustrações matinais. Zerar as faturas delas.
Afinal, o que é a vida senão as escolhas que nós fazemos daquilo que ela faz conosco.
Aí você esquece de todos os aborreceres cotidianos, seletivamente pinçados naquela manhã, e olha para aquela mesa da cozinha.
Ali, tomando café, estão seus pais. Uma cena cada vez mais rara, e que com o avanço da idade é mais finita a cada dia.
Aí você serve para sua a mamãe um cafezinho com leite, serve para seu papai um pão do tipo bisnaguinha com manteiga.
Então ida adentra na cozinha dizendo que achou o carregador.
Sua mãe agradece aos vaqueiros.
Você sorri. E mais uma vez agradece estar aprendendo para que lado olhar a vida, e quais janelas deverão ser fechadas, antes que contaminem todo o bom, belo e virtuoso, com seu cheiro fétido, que ainda lhe resta.
Beija seus pais, despede-se de Cida, e segue para a palestra Gestão das Emoções e Relacionamento Interpessoal, agora mais convicto ainda do que falará!
Aí você entra no carro, começa a dirigir, e uma borboleta azul passa à sua frente. Você a vê e a ama, sentido uma profunda gratidão por ela existir e se fazer presente, nas manhãs de teu viver, raríssima que é.
E o amor aquece todo seu ser.
E, ao dirigir, medita: o que é a vida senão as escolhas que fazemos, as janelas que fechamos, junto com suas renuncias, e o lado que decidimos olhar, considerar, valorizar e carregar conosco? Escolhendo seletivamente e racionalmente o ser mais feliz, apesar da juntada de cacos diária, ao prosseguir esperançoso pela nossa jornada peregrina.
Aí você acorda, e num belo dia percebe que a vida é breve demais para ser pequena.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores