Quando de lá saí, eu não tinha o chão nos pés. Não devemos fazer esse tipo de coisa sozinho, pensei comigo. Senti como se estivesse sem a gravidade. Um misto de leveza e estranheza me invadiam o coração. Agora eu não era mais um satélite que orbitava um planeta chamado BB.
É estranho, mas fundamental, em algum dia de nossas vidas deixar de ser satélite.
De qualquer coisa que nos prenda a ela.
Pergunta-me como estou, um ano após aquele dia, e respondo a todos com um enigma:
Estou me planetizando. Num processo lento, mas permanente de redescoberta de mim mesmo.
Muitos arregalam os olhos, sem entender. Outros fingem que entendem e engatam uma outra pergunta, sobre o clima, por exemplo. desviando o assunto.
Para alguns explico, o que farei para agora para vocês.
Existem inúmeras relações que temos ao longo da vida que nos satelizam.
Ficamos excessivamente dependente delas. Perdemos nossa própria órbita, luz e autonomia, ao girar tudo em torno daquilo a que nos fixamos, quase com uma obsessão fatal.
Têm relações a dois, assim, do tipo Satélite. Na qual, nossa vida só tem valor se a do outro tiver. Nosso dia só terá luz, se o dia do outro se iluminar. Nosso riso só se abrirá, se o outro também sorrir.
Aí satelizamos nosso existir, em torno de uma pessoa. E morremos um pouquinho, a cada dia, por excesso de dependência dessa pessoa.
A pessoa perde seus próprios interesses, gostos, prazeres e sua liberdade de ser, tornando-se refém da força gravitacional que o outro exerce sobre ela. Esse excesso de apego reduz a relação a uma relação de dependência, do tipo mórbida. E terceirizamos nosso bem-estar ao outro, sob o qual damos voltas, tal qual a Lua sobre a Terra.
Têm relações com o mundo do trabalho assim também. A pessoa passa a girar toda a sua vida em torno da empresa, e até o clube que frequenta é vinculado a ela. Amigos, diálogos, lazer, eventos, noitadas, tudo vai acontecendo em torno do ambiente cultural e negocial daquela empresa. Até as camisas que usa na caminhada tem a marca da empresa. E a família, ou outros interesses profissionais, culturais, sociais e espirituais vão ficando para um dia qualquer... "quando tiver tempo, ou me aposentar".
O trabalho é idolatrado e a pessoa vira um satélite em torno do planeta CNPJ. E é como se todos participassem quase de um igreja, com seus dogmas, ritos, mitos, heróis e vilões. Tudo gira em torno dela. O que poderia ser chamado de comprometimento, de vestir a camisa, se for feito de forma exagerada vira uma doença, que exclui outras possibilidades de sentido. E, na aposentadoria, perde-se o planeta, sob o qual orbitava, e aí já viu, né?
Têm relações de pais com filhos do tipo Satélite, também. Enche-se as crias de cuidado, de proteção, de zelo, tudo ao excesso. Tirando delas mesmas a possibilidade de experimentarem a vida, com tudo que vem no pacote de viver. É como se os pais quisesse viver pelos filhos, ou afastar deles todas as barreiras que a vida lhes impõe. Pais assim são crueis para o casamento de seus filhos. Quando sentem-se que perderam seus planetas, nos quais orbitavam, para outras pessoas que "roubaram o coração dos filhos". Aí passam a exigir visitas periódicas, atenção e cuidado, como se entregassem a fatura pelos "anos que lhes dediquei a vida". E fazem chantagem emocional com os filhos, na vã tentativa de mantê-los por perto, afinal toda a vida desses pais passou a ser vivida em função deles, no desempenho do papel extremado de pais. Até o namoro, de um para com o outro, foi esquecido nas gavetas do coração, visto que eles tornaram-se satélites da vida dos filhos.
Aprendi, neste um ano a me planetizar. Não quero mais ser satélite de nada. Nem de trabalho, nem de filhos, nem de vida afetiva, nem do próprio tempo, com suas marcações de coisas a fazer.
Aprender a ter luz própria, a voar para outras paisagens, a redescobrir interesses, a aventurar pelos limites e fronteiras dos sete mares, sem medo dos dragões que foram plotados nos mapas de oceanos desconhecidos.
Toda relação Satélite x Planeta anula um dos dois. Ninguém quer isso. Nenhum planeta quer isso de seu Satélite, falando do ponto de vista comportamental, emocional, e não astronômico.
Pergunte a uma mulher, que tem um satélite babão ao lado dela, e louco de paixão, se ela pediu isso. Aquele dedicação doentia e excessiva, a ponto de seu amado perder-se dele mesmo, dos gostos, interesses e outras vocações, para "cultuá-la e servi-la". Ela não pediu. Relações boas são entre planetas, pois juntos formam uma constelação. E, ambos estão inteiros, luminosos e com órbita própria, mesmo que combinada. Para que possam oscilar pertinho, um do outro, a um abraço de distancia.
Pergunte aos filhos de pais excessivamente cuidadosos se eles querem isso. Se eles querem que os pais devotem a própria vida a eles. Esquecendo-se do papel de marido e mulher, por exemplo. Ou de tantos outros papeis que a paternidade e maternidade vividas de forma dependente exclui de sentido. Eles não querem suas vidas invadidas pelos seus pais. E até seus casamentos.
E por aí vai.
Então, um ano após minha aposentadoria, e num ano no qual vivi outros desligamentos, ou acoplagens, descobri que o principal aprendizado é o de planetizar a existência.
Ninguém, nada, ou nenhuma coisa, merece que você, ou eu, passe o dia gravitando em torno dela, excluindo qualquer outra possibilidade de sentido.
Precisamos reaprender a ser Planeta nas mais diversas relações que travamos com a vida. Ser Planeta é ousar cultivar autonomias e luz própria, mesmo que em alguns momentos gere medo do desconhecido, da ausência daquela força que nos plugava a ela e nos dava uma falsa sensação de segurança.
Ser Planeta é perder o medo de abandonar-se no vazio de si mesmo, enfrentando seus próprios monstros, crenças e hábitos limitantes.
Ser planeta é entender que toda a força que nos prende, de forma doentia, a algo um dia cessará. E, não poderemos, na ausência dela, ficar ricocheteando na atmosfera, ou incendiando, como Satélites quando caem em Planetas.
Então, caros amigos, aprendi que é urgente planetizar tudo em meu viver. E é o que venho fazendo nestes doze meses. Com dias melhores, dias piores. Com idas e vindas. Mas, num crescendo em busca do que gosto, sou e quero. Às vezes da medo, o medo da liberdade de quem sempre viveu e aprendeu a comportar-se nas gaiolas que orbitam planetaas. Mas, é medo fraquim, sem sustança, embora metido a besta, e logo passa, é só continuar desafiando os limites na busca por si mesmo, reais ou imaginários.
E isto é uma coisa que tem me mobilizado a redesenhar outros esboços de mim mesmo, que estão sempre inacabados. Desenhos de planetas possíveis.
Então, por que não fazer aquela tatuagem um dia querida, aprender a dançar, velejar, ou um hobbie do tipo cervejeiro, curtir abestagens e estranhices, nadificar o tempo, aprender novos conhecimentos, permitir-se novas aventuras, se levar para passear, namorar bastante, festar a vida, participar de um outros grupos sociais, conhecer novas culturas, lugares, pessoas? Deixando de orbitar sob algo, ou alguma coisa, e criando sua própria trajetória, sem a força danosa da gravidade existencial, por melhor que seja exercida pelo outro, ou algo, em nosso viver?
A isto chamo de planetizar a existência, tu vem comigo?