O amor pede passagem.


Vou chegando na padaria e observo uma cena idílica.
De forma prosaica, um cachorro aguarda seu dono comprar o pão matutino.
Deitado na calçada, fita com olhos esperançosos a porta da entrada, envolto em mil pensamentos, enquanto aguarda seu dono amado voltar.
Fiquei observando-lhe de longe, enquanto sorvia meu café. Ele, de tão concentrado, nem se mexia. Nada que acontecia à sua volta o distraia. Ele sabia que não podia perder seu dono de vista. E a força do amor desligava todos os outros sentidos que não fossem úteis à espera do amado.

Logo percebi que o dono se aproximava dele, o rabo abanando não deixava dúvidas; seu amor estava chegando e o corpo falava. Nosso corpo fala quando estamos perto de quem gostamos. Olhos brilham, hormônios disparam a produzir, e uma alegria boba teima em dissolver emoções pálidas adormecida. Revelando-nos em nossa maior beleza, a de amar. O café teve um gostinho especial, até esqueci momentaneamente um relatório que precisava finalizar e o prazo corria de minhas mãos.  

Agora tinha todo o tempo do mundo. Não perderia a cena, até sua completude.
Lentamente o dono soltou a corda e ambos partiram para casa. Iam tomar café juntos.

Cheguei no trabalho e mergulhei no bendito relatório. As palavras voavam em direção ao texto, eu me sentia potente, energizado, acho que produzi em duas horas o que levaria umas 4hrs.
Perto das onze, estava exausto, mas feliz. O trabalho havia chegado ao bom término, já tinha os dados e análises de que precisava para uma missão que iria fazer.

O amor, mesmo quando o vemos nos outros, nos mobiliza ao nosso melhor. Pena que algumas pessoas nãos e alegram com as alegrias dos outros, com os amores que os outros expressam, e vão secando lentamente. Fazemos parte de uma mesma coletividade; assim, a alegria dele é a minha, a dor dele é a minha.
Dirijo-me à pequena copa para um café restaurador. 

Paulinha, nossa telefonista, pede um conselho. Paulinha dá boas crônicas. rsrs
Ela pergunta se homem gosta de romantismo. Me conta que está planejando uma noite com seu amado, e que está sem dinheiro para comprar flores, mas que pensa em decorar seu apartamento com coraçõezinhos recortados, caprichadamente recortados.

Uauuu!!!
Ando emotivo, e um argueiro entrou em meu olho na hora em que a ouvi descrever a cena que pensava em fazer, embora receosa da reação dele.

Era amor. Dos bons.

Disse-lhe que amamos romantismo, aliás quem não gosta de se sentir amado? Só fazemos pose. Gostamos de receber flores.
E, que ela desse vazão ao sentimento que brotava de seu coração. Toda forma de amar pode ser boba, aos olhos de pessoas desamadas e murchas, mas que ela não devia se limitar por elas.  
Que ela seguisse em frente expressando o amor. O máximo que poderia acontecer era ele não prestar muito atenção nos detalhes dos coraçõezinhos, coisas que nós homens às vezes fazemos, ou não retribuir na mesma intensidade.

Mas, que ela não deveria pensar que estava fazendo isso para ele, na verdade, era para ela. 

Toda forma de amor que expressamos é no fundo para nós mesmos, volta para nós.

Fazemos por nos sentirmos melhores ao fazê-lo.
Não devemos expressar amor para receber amor. Isso é comércio, barganha ridícula que nos faz sofrer. Ficamos esperando demais que o outro faça a mesma coisa para conosco, e nos estrepamos. Quanto maior a expectativa maior a desilusão.
Repense expectativas.
Ou fica-se co-dependentes, afetivamente falando, das respostas e estímulos do outro, o que é uma doença.

O dia seguiu seu ritmo, contudo bem mais iluminado do que o anterior.
À tarde participei das reuniões dos Conselhos e de Apresentações Institucionais.
Perto das 19hrs, Joice, nossa copeira, adentra à minha sala.

Ela estava ofegante.  Acabara de vir do Banco e conseguiu tirar um empréstimo para comprar uma casinha em Brasilinha (55 Km de Brasília, sentido Formosa-GO).

Falou da casa como se eu fosse um parente próximo. “Têm dois quartos, é perto do hospital onde levo minha filha para fazer fisioterapia; e também é perto da praça, onde o outro meu filho gosta de brincar, um achado. E o dono fez um bom desconto, se fosse à vista.

Depois da overdose de emoção, dela contando-me e mostrando as fotos da casa, revelou que ainda faltava R$ 5.000,00. Mas que faria de tudo para conseguir, até trabalhando de diarista nos finais de semana.

O amor de ter um cantinho para chamar de nosso fechava o dia. O amor daquela mãe, priorizando na escolha da casa aspectos relacionados aos seus filhos, fazia jorrar uma torrente de luz na sala. A luz do amor.

O dia ia chegando ao seu final, meu coração era só gratidão pelos amores que testemunhei e que me tornaram melhor:

O amor entre pessoas e animais, que gera a luz da fidelidade; amor de Ágape.

O amor entre enamorados, que gera a luz da cumplicidade; amor de Eros.

O amor entre mãe e filhos, que gera a luz da divindade; amor de Filos.

Nesse dia, lá do alto, o Bom Deus viu um cachorrinho amorosamente e pacientemente esperando seu dono; uma telefonista amorosa, cortando caprichosamente coraçõezinhos de papel laminado, para encantar seu amado; e uma mãe love-esperançosa, mostrando a foto de sua quase casa, embevecida com a possibilidade de oferecer um melhor conforto aos filhos.

Lá do alto ele sorriu, e consolou-se um pouco do luto pelas vítimas de Nice na França.   

Enquanto o amor pedir passagem, a Terra terá futuro, mesmo com tanta dor dos crimes contra a humanidade que vemos presenciando nestes tempos complexos, insanos e incertos. 

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