Vidas e partidas, partidas da vida!






Meus vizinhos da direita chamam-se Aguinaldo, Marinalva e o pequeno Nicolas. Eles moram naquele barracão de madeira. Aguinaldo é pedreiro e está construindo aquela casa.
Conheci Aguinaldo quando desesperado com minha cerca, dos fundos de meu lote, que ameaçava tombar, buracão abaixo - uma cratera aberta entro me lote e o dos fundos, aberto por um insano vizinho.

Aguinaldo me ajudou construindo umas colunas, no meu lote, amarrando minha cerca nelas para melhor fixá-la. Evitando que tombasse vala abaixo. 

Num dos finais de tarde e boca da noite, na qual ele em casa trabalhar nas colunas, convidei-lhe para jantar conosco no Natal, junto com sua esposa e filho.

Ele topou.

Dia 24/12, aguardavam-lhes ansioso. Durante a tarde, fui umas três vezes na obra e não os vi. 

Será que eles tinham desistido, diante de tanta pobreza e simplicidade de suas vidas, talvez envergonhados?

A condição de extrema pobreza de um simples pedreiro e sua família é inconteste, pois nem lugar para ficar no DF eles têm, vieram do interior do Goiás, e para economizarem moram num barraco, na própria obra, na qual é um dos pedreiros. 

Eles são de uma pequena cidade perto de Pirenopólis-GO, que segundo os mesmos nem consta no mapa.

Perto das 21hrs eles chegam. Meu coração alegra-se.

Desconfiados, tímidos, tal qual gado que entra em brete de abatedouro eles vão se enturmando.

Aos poucos as crianças começam a se divertir, sempre elas as primeiras.

Entre uma cerveja e outra Aguinaldo e esposa contam sua vida.

Vida castigada, mas feliz, como a de tantos humildes brasileiros.

Aguinaldo diz que a construção civil foi um achado, num momento que a fazenda na qual era vaqueiro despediu funcionários, ao comprar máquinas, e ele foi um deles.

Veio trabalhar de auxiliar de pedreiro. E, como sua visão é das coisas do belo, do harmônico, logo foi se destacando na função de ajudante de acabamento, de ladrilhos e revestimentos para banheiro.

Aguinaldo daria um excelente fotógrafo. 

Com pouco tempo já era o pedreiro titular, desse rigoroso, caro e difícil serviço de uma obra: chamando, não sem razão, acabamento.

Quem já construiu sabe o quanto se sofre ao ver um piso, ou uma pastilha de vidro - cara pra chuchu, quando assentados, mal alinhados.

Aguinaldo me diz que é bom das vistas. Que olha e vê onde será o reto, e segue as vistas.
Fiquei com vergonha de ter dito, dias antes quando chegara enfezado do trabalho, que uma das colunas aparentava estar torta. Torto era eu.

Hoje fui olhá-la novamente, botei um prumo - objeto para aferir alinhamento verticais, e pimba!
Nunca vi algo mais perpendicular, mais reto, num ângulo de 90 graus com o solo. Perfeita.

Voltando à Ceia, agora bem mais à vontade Aguinaldo me falou que passa alguns meses nas obras, finalizando-as e volta para a roça.

Ali é que é feliz. Volta pra casa de familiares e eventualmente é chamado para amansar cavalos e bois, touros não.

Pergunto logo de cara porque touro não, ele diz: Touro não amansa é brabo por natureza.

Ahh, fiz cara de quem entendeu.

Ele me conta que é o melhor "amansador" de cavalos da região.

E sai contando causos e causos dos cavalos que amansou, tido como impossíveis por muitos vaqueiros experientes, e ele os adestrou.

Sua esposa vai reforçando, agregando mais detalhes às histórias, sabe o nome de todos eles e fala orgulhosa, homens são muito diretos em suas narrativas orais.
Ela se lembra de muita coisa, e ao contar, revela toda admiração por esse trabalho do seu marido - um amor de apreço (leia numa das crônicas do blog http://bodecomfarinha.blogspot.com.br/ sobre o Amor de Apreço, raríssimo aos casais nos tempos atuais).

Ele me diz que trabalha sozinho. Não gosta que ninguém fique olhando ele amansar os bichos. É só ele e eles.

Diz que um dia tava dando errado, e já passar amais de 15 dias, ele costuma amansar o bicho mais tinhoso - tirando os touros, em uma semana. Um recordista nessa arte.

Aí ele foi falar com o dono que não tava dando certo. Num é que o dono se entregou e disse-lhe, sem pensar: "É, eu tava vendo".

Ele então deu uma gargalhada e disse-lhe: " Se tu estava vendo, era por isso que não funcionava. Não pode. Manda energia ruim. Que no íntimo torce pelo bicho. Trabalho só."

Uma semana sozinho e o bicho brabo tava dócil que uma criança nele montava.

Perguntei-lhe como um trabalho tão bacana não tinha lugar numa fazenda? 

Ele me falou que os tratores e motos tomaram o lugar das éguas, jumentos, cavalos, bois de tração.

Fiquei pensando, esse rapaz só falta quem o veja.

Ele fala dos animas com tanto carinho, com tanto prazer, que imagino as cenas como as de um filme ou livro que li, chamado do Encantador de Cavalos.

Ele disse que não bate nos animais. Apenas usa uma corda e seu olhar. 

Fica olhando para o bicho, olhando, andando puxando-o bem devagarinho com a corda, para ele adquirir confiança.

Olha, olha, olha e um belo dia ele caminha sozinho e o animal o segue. Tal qual o cachorrinho doméstico.

Eu falei, mas isso é feitiçaria.

Ele e ela riram à vontade.

Riram de mim, de minha pouca sabedoria, isso é amor. Amor que se transmite no olhar, é telepatia entre animais que se reconhecem e se amam.

Ahh, que noite de natal linda.

Quanto ensinamento Aguinaldo e Marinalva me trouxeram.

Como seria bom se pais, educadores, gestores educassem pelo olhar, pelo caminhar puxando uma corda, ao seu lado - devagarinho, sem queimar etapas.

Acreditando que mais cedo ou mais tarde ele ficará dócil. Perderá o medo, a ansiedade, a força que quem teme tem de repelir a tudo que lhe poderá fazer crescer, refugiando-se na caverna do ser.

Perguntei quanto rende uma amansada de cavalo. Ele me falou que se for para cavalgar, para servir de monta é mais barato.  Meio salário mínimo, por 15 dias de serviço.

Mas, se for para as coisas da roça, para carroça, tração, ou arado, é mais caro, custa um salário e é um trabalho de um mês.

Fiquei mais uma vez pasmo. E perguntei-lhe o porquê da diferença. Ele me disse que nos segundo caso o animal precisa aprender a se esforçar, até a sofrer, à lida dura.
E, demora mais esse tipo de aprendizado.
Demora, mas aprende, então custará mais. 

Ca ca ca, agora fui eu que ri de tamanha sabedoria dele.

E não é mesmo. 

Um aprende para o lazer, para cavalgar.

Outro tem que aprender para o trabalho, e são muitas ordens que precisa assimilar e desempenhar. .
Tal qual nós humanos.

À minha frente não estava mais um pedreiro, um miserável da vida, não era mais Aguinaldo - o Pedreiro. Agora era Aguinaldo, o ser humano, o amigo. 

Estava um orgulhoso ser humano.
Neta, minha "empregada doméstica" tudo ouvia, reconhecendo-se na luta do casal. 
Ela, também é uma batalhadora da vida e do viver. 
Faz Enfermagem, numa faculdade particular, investindo todo seu salário no sonho de uma vida melhor. 

Sonho de vaqueiros de vidas partidas, de um dia partir de sua vida tão difícil,
para outra de melhor posição social.

Partidas da vida.

Neta, estava literalmente encantada com as histórias do casal. 

Com Aguinaldo contando seus casos e sorrindo aberto e despudoradamente.
Um sorriso de tão orgulhoso com tudo que fez, pela vida vaqueira e pedreira afora, com uma auto-estima tão boa, que nenhum momento botou as mãos na boca, para esconder a ausência dos dentes centrais.

Ele e ela estavam ali, plenos, completos, dignos, autênticos, íntegros, apesar de tão pobres.
Pobreza não é sinônimo de sujeira, burrice ou falta de caráter.
Pelo contrário, ali, à minha frente, um casal mais satisfeito com suas vidas, do que muitos em condições melhores.

Seu filho, o Nicolas, com um sorriso angelical, expressava todo o amor que recebe e sente de seus pais.

Que criança meiga! 

Imagino-a brincando com os tijolos e areia da construção. Dias depois dessa crônica, o meu filho a ele se juntou, entre tijolos, madeiras e fizeram a festa do brincar.

Essas pessoas só precisam de oportunidade, de uma fazenda qualquer que aproveite seu potencial de vaqueiros. Ou de uma construtora que pague decente e que invista neles.  

Contudo, pagam mal e os exploram.  Ele me relatou vários trabalhos sem receber, inclusive dos adestramentos. Relatou sem mágoa, vida que segue.

As pessoas para as quais prestou serviço as olham como miseráveis, invisíveis, como aquele casal que um deles não tem os dentes da frente.

Não param para contemplá-los em sua grandeza, ouvi-los em sua sabedoria, em quanto nos podem ensinar.

Encantar cavalos é uma arte, um dom, algo precioso e minha vida, na noite de natal, foi invadida por esse tesouro. Tem gente que ganha uma nota com isso. Gente que foi vista. 

Perguntei-lhe se ele como nunca caiu de um cavalo e monta bem não gostaria de participar de rodeios. Ele me disse que nem de rodeio nem vaquejada, tem pena dos bichos em rodeios, indomáveis, terem  em seu lombo alguém querendo ficar ali por mais tempo.
Só piora a situação arredia deles.
E, das vaquejada tem pena da derrubada pelo rabo dos animais, muitos dos quais perdem o rabo da força do tranco, ou até morrem, dias depois pelas consequências do baque que tomaram.

Que sabedoria!  

Que olhar para os animais divino! Ele conversa com eles, agora não tenho mais dúvida.

Andamos precisando de alguém que conversem conosco assim.
Sem olhar o que aparentamos, mas o que temos de melhor no interior e temos dificuldades de expressar.
Andamos precisando de amansadores: 
ser amansado, ser encantado, voltar a ter a docilidade que já tivemos.
A vida vai nos embrutecendo.
Precisamos de Aguinaldos em nosso viver, pessoas que com um olhar de ternura, de docilidade, digam-nos que nos amam. 
E quem não precisa de encantadores de almas em seu viver?
Quem não precisa domar o homem ruim que habita, juntamente ao bom, em todos os corações?
Quem não precisa se sentir útil novamente, ter seu potencial revelado, sair do estereótipo de "sem solução", "indomável", para o de amigo, amoroso, parceiro e de boa convivência, quem?

Precisamos de Aguinaldos.

De seres, pessoas que nos levem a sempre sermos melhores, melhores até do que achamos que poderemos ser.






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