Pessoas comuns, atitudes incomuns.



Acordei cedinho para ir ao trabalho, entrei no carro novo, tirando da loja no dia anterior, e sorvi aquele cheirinho maravilhoso, que quem o inventar ficará milionário, comentando com João Gabriel (o JG): cheira filho, é “cherim de carro novo”. JG imitava-me aspirando o ar, e ambos caímos na risada.

Ao chegar ao trabalho vejo o Ceará, lavador de carros das antigas, considerados por seus clientes quase um patrimônio imaterial de nossa empresa.

Peço ao Ceará que dê um trato no carrinho, pois a lavagem que a concessionária fez ficou um tanto precária.

Como de costume, deixo o pagamento no banco e vou trabalhar. No trajeto tenho uma estranha sensação de já me sentir mais limpo. Tenho isto comigo, quando o carro tá limpinho sinto-me assim também.

Perto de meio dia pego o carro para ir buscar o JG na creche. Aspiro aquele cheirinho novamente, e alegro-me com a limpeza dos vidros, tapetes, pneus, lataria – um capricho só.

Percebo que no retrovisor tem um bilhete afixado: “Ligue para mim, Ceará”.

Penso comigo, será que pegaram o dinheiro do Ceará – aquele que costumo deixar sobre o banco para remunerar seus serviços, e ele ficou no prejuízo?

Ou será que ele majorou o valor da lavagem?

Vou dando ré e o guardinha, personagem impoluta do hall de entrada de alguns prédios, dirige-me a palavra: “O Ceará precisa falar com o senhor.”

Penso comigo, vixe Maria, agora estou passando recibo de “veiaco” até para o pessoal da vigilância.

Dou a volta no prédio e dirijo-me para o portão de saída, no trajeto escuto gritos, “Seu Ricardo, seu Ricardo...”, olho pelo retrovisor e vejo o Ceará acenando em minha direção.

Não sem uma ponta de aborrecimento, encosto o carro na primeira brecha que encontro para ver o que ocorre.

Enquanto ele caminha em minha direção olho para o relógio que galopa e penso no JG esperando-me ansioso. Quando ele chega, fulmino um olhar e metralho algumas palavras:

“Que é que tá pegando Ceará, te dei calote foi?”

Ele olha pra mim, com um olhar manso e risonho, e diz que não é nada disso. Pergunta-me então se eu vira ao pegar, ontem o carro na loja, uma mancha branca na porta do passageiro.

Uma profusão de sentimentos brota naquele momento: espanto, assombro, vergonha e surpresa de tal cuidado com o cliente que acabo de receber.

Naquele momento, Cronos foi iludido por Eros, e tive o todo o tempo do mundo – e fui com o Ceará verificar a maldita mancha.

Agradeci penhoradamente sua ajuda e alerta e sai para buscar o JG.

No caminho, saboreei a sensação de ter sido percebido, por aquele que me presta um serviço, de uma forma diferente, para além da relação econômica que se estabelece, mas com um jeito especial de tocar-me e de me fazer sentir que sou estimado e importante na relação que se estabelece entre nós.

Nos meus 13 anos de Brasília, testemunho que esta atitude rareia aqui no atendimento do Distrito Federal. As relações de atendimento por aqui são muito secas e frias.
São atendimentos robotizados, limpinhos, mas sem gosto de gente. Insípidos.

Agradeci penhoradamente a ele, peguei o JG na creche e dirigi-me para a concessionária, com muitas pontas de preocupações no cenho franzido.

Lá chegando, procurei o nome que constava num cartão, grampeado no manual do carro, que era o do chefe da Oficina, aquele que agendaria as revisões periódicas.

Relatei o problema e a minha preocupação com o fato.

Fui logo dizendo, meu lavador de carros, o Ceará, disse que até cera passou e a mancha não saiu.

Deve ser erro de pintura.

Estava furioso.

Ele olhou o problema e agiu comigo tal qual Provérbios 15:1 - “A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira.”

Com calma, passava a mão na mancha e ia analisando-a.

Não me retrucou, teve empatia, e falou que não era erro de pintura, que daria um jeito ali mesmo.

Ele, surpreendeu-me também. Não abriu ordem de serviço, não me encaminhou a ninguém, ele próprio disse que iria resolver a situação naquele momento.

Pediu um tempinho e foi no subsolo buscar algo para resolver.

Voltou com uma massa na mão. Perguntei-lhe o que era. Ele me disse que se tratava de massa de vidraceiro, o segredo de ouro dos lanterneiros.

Passou a friccionar a massa na lataria e qual mágica a mancha ia dissipando-se e dando lugar à cor do resto do carro.

Com calma ele me disse que achava que aquilo era resto de cola, algo que eu devia ter pisado com a roda e tinha espirrado na lataria.

Nem precisa dizer o quanto fui para casa surpreso com as atitudes daqueles profissionais.

Um que me encantou por ter ido muito além da relação de trabalho contratada, colocando-se empaticamente na situação de quem está nas mãos com um prejuízo iminente.

O outro, por não ter transferido a culpa, para o próprio cliente, e agiu na hora com o que tinha, simplesmente fazendo o que de melhor podia fazer naquela situação e resolvendo a crise.

Um poderia simplesmente ter lavado o carro, pouco se preocupando com manchas, até porquê manchas que não largam são comuns ao negócio dele. Mas, ele foi além.

Juntou a informação da compra recente do carro, àquela estranha mancha e intuiu que algo de muito grave podia ter acontecido na etapa de pintura da lataria.

Juntou informação X com a Y, gerando conhecimento e aplicando-o no negócio que opera.

Ele errou, mas tudo indicara que acertaria. Só em ter me alertado para o fato, fidelizou minha relação com os serviços que presta.

O outro podia muito bem ter se escondido nos processos de entrega do veículo, ter conferido o check-list que fizeram na minha presença e ter me dito que tudo fora entregue em perfeito estado. Mostraria até o meu ciente nos itens, um dos quais a pintura metálica.

No limite, recomendaria que eu acionasse o seguro para pintar a porta numa oficina autorizada.

Não fez nada disso, tentou ajudar sem colocar-se numa postura reativa ou de embate. Não se escondeu no processo de trabalho dele para não atender.

Olhei no crachá dele e estava escrito “Anderson – Chefe de Oficina”. Pensei, este cara educa pelo exemplo, e entendi melhor o porquê que a minha esposa incentivou-me comprar naquela revenda, usando como exemplo a forma pela qual ela era tratada nas revisões que fazia do seu carro, do mesmo fabricante.

Dias depois encontrei o Ceará e disse-lhe o quanto ficara feliz com sua atitude. Ele contou-me um pouco de sua vida.

Oriundo de Sobral-CE, migrou para Brasília em 1992, Mora em Planaltina (distante 40 km de onde trabalha), e se orgulha de sua família feliz, de sua esposa e de seu casal de filhos com 10 e 6 anos.

Disse-me que a jornada cansa que lavar carro exige esforço físico e concentração, mas que ama o que faz. Lava uma média de 12 carros-dia, e no final do dia fica muito cansado.

Mas não desanima, veste um traje de corrida e vai treinar corrida de rua, pra competir nas provas do Distrito Federal, e até em maratonas – país afora, de que participa.

Fiquei estupefato. Ali, a minha frente, um guerreiro e desbravador de novos sonhos.

Ele falou que são seus clientes quem o patrocina, sempre que precisa de uma ajuda para manter-se no esporte, e até competir fora. Falou que uma cliente arranjou até nutricionista que o atende de graça.

Em cada palavra proferida, eu sentia o quão grande era aquele ser que ali debulhava suas pequenas vitórias, conquistas e sonhos.

Mostrou-me todo orgulhoso a camisa da corrida de São Silvestre (veja na foto).

Fiquei impressionado com o que escutava. Estava ali a minha frente, não somente um excepcional profissional, mas também um ser humano belo, com seus sonhos futuros para a baixa dos tempos nas corridas, e porque não de vencê-las.

Aprendi, na pratica, com a história do Ceará o que Gandhi quis dizer ao falar que “Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.”.

À tardinha fui celebrar a vinda de minha filha, para passar a semana santa comigo, no Outback.

Era quinta-feira, véspera de feriado, e aquilo lá fervia.

Comentava com os filhos e namorada (o) como são legais atitudes profissionais Ceará-Anderson.

Pedi aquela suculenta costela, com aquele molho que só existe no Outback a “Ribs on the barbie”. Para acompanhar um chope.

Brindes feitos tomei uns goles e comentei: estupidamente gelado, que coisa boa.

Eis que se aproxima uma garçonete e me diz, senhor preciso trocar seu chope por outro por conta da casa.

Olhei para o copo já na metade, e entre alegre e surpreso, perguntei o porquê.

Ela falou que estava servindo as mesas por falta de garçons naquele dia e que era a bartender da casa. O mesmo que barman, porém do sexo feminino. E que só de olhar um chope sabia se tinha sido tirado errado. Aquele, segundo era, só tinha gás e revelava que o botijão estava secando. E que não tinha o gosto deum verdadeiro chope.

Minutos depois volta com outro que reluzia ouro em cevada, esperou que eu provasse e disse: agora sim o sr. está tomando um chope de qualidade.

Quando ela saiu, nos entreolhamos e pensamos, agora seriam três os profissionais de destaque: Ceará, lavador de carro, o Anderson – chefe de oficina mecânica, e a Fernanda, bartender.

Em comum a estes profissionais o propósito e o sentido do trabalho.

Eles eram presença e liderança marcante no seu agir no mundo. Transformavam realidades ao seu redor e faziam de seu espaço laboral um lugar de serviço.

Fiquei pensando o quanto seria bom se alguns profissionais desmotivados e que tratam os clientes com rispidez, estagiassem uns dias ao lado destas pessoas comuns que no dia-a-dia fazem coisas incomuns... o quanto seria bom para o crescimento delas, entre as quais eu me incluo - nos dias em que acordo com a pá virada pra lua.

Este trio de profissionais, de autoestima e profissionalismo 10, muito ensinariam com suas próprias vidas.
Profissionais que sabem encontrar prazer nas pequenas coisas, na sua vocação profissional, e sabem batalhar o ganha-pão diário, sem perder a alegria, motivação e a entrega de resultados.

Eles e tantos outros, espalhados país afora, constroem um destino possível, mesmo sob condições adversas da conjuntura onde inseridos.

Eles procuram ser o melhor para a humanidade e não o melhor da humanidade. Eles não veem o cliente como peso, estorvo, mas como aquele que dá sentido ao seu próprio trabalho.

Eles contrariam muitos trabalhadores que alegam, aos quatro cantos, com risos sarcásticos, que "o trabalho seria melhor se não fosse pelos clientes."

Para terminar, fiquei sabendo que outro dia roubaram a moto do Ceará.

Ela não tinha seguro. Pensam que ele desanimou, um dia sequer?

Veio trabalhar de buzão, lata na mão e estopa e cera na outra. Ao chegar, comentou com um colega o ocorrido. Comentou sem querer nada em troca. Comentou como comentamos com os amigos as intempéries de nosso viver. Este amigo, após ouvi-lo mobilizou a clientela do Ceará, numa espécie de rifa, que conseguiu apurar o suficiente para o presentearem com uma nova moto.

Estas coisas me levam a crer num outro mundo possível, um mundo no qual os valores da gentileza, do cuidado, da escuta, da empatia, da solidariedade, da justiça, da ética sejam tão comuns, no seio de nossa sociedade, como o trânsito em nossas cidades.

Ceará, Anderson e Fernanda, em posições sociais tão diferentes, contudo numa coisa iguais, a forma pela qual encaram sua liderança – como a de uma liderança servidora.

Não temem subverter a ordem reinante e reinventar um modo de ser.

Infelizmente são exceções. Nossas organizações, econômicas, públicas, ou sociais, estão cheias de gente mal-resolvida, com raiva de cliente, que vagam nestes locais qual zumbis, sem alma. Estão sempre no piloto automático e os clientes lhes são peso.

Sem um propósito pelo qual viverem, sem entender o sentido de seu trabalho, e até de correr atrás de outros sonhos, pós-jornada, como as maratonas do Ceará.

Obrigado Anderson, Ceará e Fernanda por terem me feito sentir o quanto fui especial para vocês.

Obrigado pelo toque de humanidade, carinho e afeto que deram nos relacionamentos que travaram comigo.

Vocês foram terapêuticos e tornaram meu viver mais feliz.
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 O Ceará foi o campeão da volta do lago, 55km, neste último final de semana, 17,06. Seu nome tá lá estampado no Correio Braziliense de hoje, caderno esportes Nosso orgulho, lição de vida.

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