Aposentadoria - A Síndrome da Tempo Elástico (Autor Ricardo de Faria Barros)




                 




"Ricardo, tudo bem?
Eu me aposentei em dezembro.
Tem algo pra me indicar?
Está valendo qualquer coisa,
porque eu estou meio perdido
e ainda me sentindo em férias."


Hoje debulharei umas letrinhas, tirarei um dedo de prosa contigo, à beira do forno à lenha.






Vamos conversar sobre o tempo?

Nada melhor do que falar do tempo e ver a chama de uma lenha. O tempo é como ela - ora mais forte, mais rápido, ora mais calmo. Mas, sempre crepitando e se esvaindo.

O tempo tem fim. O tempo não marca horas. O tempo marca emoções, vivências e pontua nossa história de vida. Quem marca horas é o relógio.

Nessa carta, quero falar-te sobre o tempo. Agora que você se aposentou a sensação do tempo ficará mais presente em teu viver.

Antes, ele estava ali, mas, preenchido por tantos afazeres da labuta diária, passava quase despercebido. Só sentíamos que sempre era pouco tempo.


O dia tinha menos de 24 horas. Tudo era para ontem e sempre estávamos devendo tempo.

Agora, uma sensação estranha lhe invade, sobra tempo. As horas caminham lentamente, qual o passo da noiva dirigindo-se ao altar.

Cursos e mais cursos ensinavam administrar o tempo - tudo era cronometrado, calculado e metodicamente planejado. Havia até o desconto do tempo no trânsito, o tempo do banho, o tempo do almoço. Tudo marcado, anotado em diários e agendas, para que equilibrássemos as necessidades pessoais, profissionais, familiares, sociais. Ufa!!!

Faltava tempo.

Agora eis que o tempo se entrega. Rende-se e diz: "Sou todo teu"!

Pânico?!

Cadê a agenda dizendo o compromisso que tenho? Cadê a ansiedade com aquela reunião que será na quarta, mas que hoje, sábado, já ocupa meu tempo mental? Cadê aquele trânsito doido comendo meu tempo?

Nada!

Agora sou eu e ele - o tempo. Estamos numa relação estranha. De reencontro.

Quando criança, éramos amigos. Aliás, até os dois anos. Cada vez as crianças são menos amigas do tempo, pela imensidade de atribuições, que pais ansiosos e inseguros preenchem nas suas agendas infantis. Faltando até tempo para brincar, socializar e "ociar" a vida.

Novamente estamos juntos, eu e ele, o tempo a me encarar. Para quê relógios? Para quê agendas? Posso acordar às dez da manhã. Posso cismar de não fazer nada. Deitar-me languidamente numa rede preguiçosa para ver o tempo passar.

Posso tirar as tão esperadas férias eternas. Eu e meu amado tempo vamos namorar. Brincar de nada fazer.

Mas, o tempo também tem suas fantasias, seus caprichos. O tempo pede significados, sentidos, motivos e porquês para se viver. Sem isso ele deixa de ser tempo, passa a ser pressa. Pressa de sumir consigo mesmo. O tempo pede presenças, pede acontecências, pede mistérios e desafios.

O tempo, antes que sempre faltava e agora que sempre sobra, continua a nos infernizar. Ontem pela falta, hoje pela sobra. Pois é o que você está sentindo nessa sua inquietação com as férias eternas: é a angústia do excesso de tempo sem sons, cheiros, toques, presenças e realizações.

Você está com indigestão emocional de tanto tempo que agora sente que tem. Precisa cuidar. Imagine como seu amigo tempo era preenchido com o trabalho.

Você passava umas boas doze horas diárias mobilizando seu tempo em função do trabalho. Começava ao acordar e tomar banho. Ali já começava a programar sua agenda do tempo em função do trabalho.

Ele era a bússola que marcava teu tempo.

Acordar cedo, tomar banho, café, ir ao trabalho, trabalhar, voltar do trabalho, jantar, descansar, para ter energia de trabalhar novamente.

O tempo destinado ao trabalho perpassou sua vida, pelo menos na metade dela, por mais de décadas. Agora, ficou um vácuo. Cadê os compromissos, a disciplina com horários, cadê o corre-corre? Cadê a adrenalina, o cortisol, os hormônios do stress, que lhe preparam para fazer frente aos mil compromissos em apenas uma hora, coisa que mães que trabalham são mestras?

Você sente falta até do que não te fazia tão bem. E agora sofre como que numa síndrome de abstinência aos hormônios do tempo, da vida urbana corrida e frenética.

Então se você descobrir como preencher, com qualidade, seu tempo livre, estará tirando a sorte grande como aposentado. Cada pessoa faz essa descoberta de um jeito. Uns passam a estudar novamente, outros se dedicam a trabalhos voluntários, escrevem, fotografam. Outros tocam novos projetos, viajam, aprendem dança de salão, participam de ONGs.

Outros se dedicam às coisas da fé, aos filhos, à família. Outros passam a colecionar de um tudo. Outros tomam coragem e resgatam antigos sonhos, namoradas (rsrsrs), projetos inacabados pela roda vida que se meteram.

Encontre a sua fórmula de ocupar seu tempo.

Não precisa ser em atividades remuneradas. Só precisa ocupar-se.

Um dia, ia dirigindo por uma rua de minha cidade natal - Campina Grande-PB - e vi um grupo de velhinhos numa roda, na calçada jogando dominó. Na fachada da casa estava escrito "Associação Amigos do Dominó". Pronto, eles encontraram algo que dá prazer, socializa, gera estímulos e sentido de pertencimento.

Nós somos seres gregários. Precisamos de grupos para nos ver neles. Afinal, o outro é o espelho de nossa alma. Compreendemo-nos nele. Ele é quem nos reconhece e dá sentido à nossa estrutura emocional.

Precisamos de afiliações. De grupos. Do cheiro de gente. De feiras livres. De festas populares. Da magia e da mística de viver.

Então, querido aposentado, afilie-se a algo que seja legal e que goste. Até uma rede social pode ser lugar de afiliação. Conheço comunidades virtuais que são terapêuticas para quem nela participa.


Ali, as pessoas estabelecem vínculos, divulgam ideias, recebem estímulos, envolvem-se com a vida de outros e preenchem seu tempo com Kairós.

Kai o que?

Recorro à Wikipédia para nos ajudar a melhor compreender o conceito Kairós: " Kairós (em grego καιρός) é uma palavra da língua grega antiga que significa “o momento oportuno”, "certo" ou “supremo”. Na mitologia, Kairós é filho de Chronos (Deus do tempo e das estações). Os gregos antigos possuíam duas palavras para a moderna noção de "tempo": Chronos e Kairós. Enquanto a primeira era usada no contexto de tempo cronológico, sequencial e linear; ao tempo existencial os gregos denominavam Kairós e acreditavam nele para enfrentar o cruel e tirano Chronos."

Entendeu?

Não!

Pera aí que traduzo.

Kairós é o tempo marcado pelas coisas boas da vida. É o tempo oportuno, o nosso tempo. Alguns dizem que é o tempo das coisas de Deus. Quando você para o que está fazendo e vai visitar um amigo no hospital, o tempo que se configura não é o de Chronos. E sim o de Kairós. É o tempo das delicadezas, da solidariedade, do que investimos para dizer ao outro, gastando nosso tempo, o quanto ele é importante.

Kairós é o tempo que uso para te responder ao email que me enviou. Kairós é o tempo do amor, do doar-se, do criar, do fantasiar, do amar. Quanto mais convertemos Chronos em Kairós, mais sentido na vida, possuiremos.

Então pense nisso. Cuide para que, o tempo livre, as férias eternas, não virem uma espécie de ócio degenerativo. Nosso cérebro precisa continuar operando, ativo. Cuide de exercitá-lo.

Nosso coração precisa sentir a existência de outros, precisa de relacionamentos. Portanto, visite, participe, mobilize, junte-se a tantos que nas suas causas precisam de ajuda.

Esse é o primeiro segredo das pessoas que são felizes no pós-carreira: elas descobrem que o tempo livre não é um fardo. É um Kairós. Um presente precioso, algo que precisa também de planejamentos, de rotinas, de agendas. Algo que não pode ser desperdiçado numa cadeira de balanço, zapeando, o dia todo, a grade de programação da TV.

O tempo pede uso, pede finalidade. E agora, você tem mil opções para ocupá-lo. Se uma não der certo ou não gostar, tente com outras. Mas, repito-lhe, o que você fará com seu tempo livre é fonte de saúde ou doença na pós-carreira.

Faça trilhas. Corra. Entre na equipe de ciclismo. Cante em karaokês. Crie um blog. Escreva sobre a história de sua família. Crie um mutirão para ajudar os necessitados. Assuma a jardinagem de uma praça pública. Invista Kairós na humanidade.

Você é belo demais, sensível demais, humano demais, gente boa demais, para ficar de férias da vida. Há vagas na empresa Construtora de uma Nova Sociedade S/A. Entre nela!

E, antes que eu esqueça, compre uma agenda para preencher com suas atividades Kairós. Crie suas próprias rotinas, padrões de comportamento, disciplinas.

Nada de deixar a barba crescer, de ficar relaxado com você mesmo. Todos os dias apronte-se para a festa da vida. Doe sua cadeira de balanço e desligue a sua TV.

Acredite, eles são a antessala da morte. São a foice e o veneno tornando sua vida apenas uma repetição de horas, com Chronos chorando ao seu lado, doido para ver em ti novamente aquele pirralho que ofegava de tanta coisa que achava legal de fazer.


O que chamava para brincar seu filho, Kairós, aquele que faz o tempo nos parecer coisa de criança, de tão prazeroso que são as coisas com o qual nos ocupamos.

Liberte essa criança dentro de ti e corra para as muitas aventuras, trabalhos, sonhos que ainda lhes aguardam para serem vividos.

Há muito o que fazer no segundo tempo de sua vida.

Nada de vestiários!

E, volte das férias. Essas férias irão te matar.

Agora ao trabalho! Há muita coisa a ser feita esperando por você. Mas, no seu ritmo e naquilo que lhe der prazer. Agora o patrão é você mesmo.





Mas, evite a tentação de se demitir. A vida pede um pouco de agitação, de dinâmica, de estresse para ser bem vivida.

Um comentário:

  1. Esperando pelo Kairós da aposentadoria!
    Ele virá ainda não faço planos, falta menos de uma década mas vai chegar.

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